Monday, October 27, 2008

Minha querida Europa,

Hoje acordei com uma raiva danada de você.

Talvez seja porque eu estou lendo "Las venas abiertas de Latinoamérica" de Eduardo Galeano, mas esse sentimento sempre vai e vem nos 6 anos que eu moro aqui. Ora estimulado por experiências muito pessoais e ora estimulado por "descobertas" históricas que dentro de minha ignorância ainda nao tinha processado. A verdade é que toda vez que tenho acesso a essas "descobertas" o quebra cabeça do mundo vai se encaixando pouco a pouco dentro da minha cabeçinha.

Como típica brasileira e amante da nossa filosofia da felicidade (sem deixar de reconhecer as nossas merdas também!) a conversa "alegria brasileira" X "depressao européia" é sempre recorrente. O porquê, a origem, as justificativas e as inevitáveis teorias de mesa de bar.

Nossa alegria sempre se atribui à miscigenaçao com a raça africana (o que eu concordo) e uma coisa que um amigo psicólogo me disse que se chamava a "pirâmide das necessidades" - quanto mais necessidades tem um povo, menos tempo tem pra se preocupar em dramas existenciais e consequentemente, fica mais fácil "ignorar" as merdas que passam dentro do nosso cérebro (também acho que tem sentido).

Os povos que estao muito ocupados com banir a fome, o analfabetismo, a violência, conseguir emprego e dinheiro têm o "privilégio" da alienaçao das crises da alma. Enquanto que os povos que têm esses problemas todos já resolvidos têm tempo de se preocupar com crises existenciais. E ainda por cima (pobresinhos!) sao pessoas ilustradas e cultas, sabem que o mundo tá uma merda porque leem e estudam em escolas conceituadas.

Eu me nego a concordar que os europeus possuem esse "tempo"! Quem disse que eles já nao têm com que se preocupar??

Tem muita coisa pra ser feita nesse mundo. Somos mais de 6,5 bilhoes de pessoas. 75% dessas pessoas que se podem dar o luxo de deprimir-se estao na Europa (nos países considerados desenvolvidos). E Europa significa somente 10% da populaçao mundial!!! D-E-Z! Essa qualidade de vida que desfrutamos aqui na Europa nao é a vida "normal", é um bolha. A vida "normal" é selvagem, é violenta, é miserável, é injusta. Nao sejamos ingênuos!

Alguém aqui nesse velho continente tao ilustrado e tao culto ainda nao se deu conta que é a existência dessa esmagadora populaçao mundial miserável que sustenta esse sistema capitalista que lhes dá o direito de suprir todas as necessidades da base dessa pirâmide? E constatando isso, alguém aqui ainda se sente no direito de se deprimir? Vao fazer algo de útil pro mundo que seus (e nossos também) antepassados massacraram por favor!

Aí tem um argumento recorrente: nao se pode controlar a sentimento da depressao, um deprimido nao "escolhe" estar deprimido... Excluindo os casos de doença psicológica real (que estou bastante segura que representa uma ridícula minoria dos deprimidos da Europa), essa depressao, melancolia, falta de felicidade, chame como quiser, pode SIM ser controlada. Pode ser substituída por um sentimento de excitaçao, esperança e alegria ao investir em projetos "aventureiros" como cuidar e deixar ser cuidado, sorrir, dizer bom dia, tratar bem aos seres humanos ao seu redor, ASSUMIR OS RISCOS DE RELACIONAR-SE, ensinar e aprender, chorar abertamente, enlouquecer (sem drogas), fazer o ridículo, dar e pedir amor, transformar-se. É possível ser feliz sim!

Como pensam que os fudidos do mundo somos capazes de ser felizes em nossos mundos fudidos? Por acaso somos insensíveis às merdas que acontecem ao nosso redor? Por acaso nao nos chocamos cada dia com a violência e a miséria?

Claro que sim! Mas "escolhemos" seguir adiante, temos que matar um pedaço de nossa sensibilidade e junto com ela vai um pedaço de nós ao ir trabalhar, andar na rua, comprar o pao, tendo que conviver inevitavelmente com a miséria em cada esquina. Nem que seja de dentro dos nossos carros de burgueses privilegiados. Temos que usar o chip da indiferença as vezes. Ou o chip do bom humor, as situaçoes mais tragicas sao muitas vezes as mais cômicas. Europa também viu muito Charles Chaplin e parece que nao aprendeu nada com ele. Nao há nenhum problema em rir das merdas se tens a consciência tranquila de que estás botando teu graozinho em algum outro lugar.

Aí vai ter uns europeus que vao dizer: "eu nao conseguiria conviver diariamente com a miséria". Aí eu digo: a única diferença entre a miséria que convivemos dia a dia no Brasil e a que se convive na Europa é que uma está vestida de seres humanos abandonados e assassinados e a outra está vestida de ipods, roupas, todo tipo de tecnologia e construçoes modernas. A miséria na Europa tem "design". Mas é tudo a mesma coisa. Tudo é fruto do mesmo sistema.

Eu acredito realmente, salvo alguns casos extremos que vivem alguns países da África por exemplo (que nao me arrisco a tecer nenhum comentário), ser feliz, alegre, viver a vida positivamente é uma questao de escolha SIM. Principalmente na Europa. Ter nascido aqui é como ter ganhado na loteria. Isso já deveria ser suficiente para se levar uma vida alegre. Claro que eu admiro os que pensam que um ser humano precisa mais que sentir-se sorteado para ser feliz. Nesse caso, tentar ser útil para alguém mais além de si próprio e tentar fazer mais feliz de alguma forma os outros 90% do planeta que nao foram os sorteados pode ser um bom começo. E se é pra falar sob um ponto de vista egoísta: nos ajuda a ser felizes e sanos. É verdade. É como a coisa da cerotonina no cérebro quando tu vai pra a academia. Quanto àqueles que se contentam em serem felizes por serem os sorteados, tudo bem, é uma escolha, mas pelo menos que o sejam e nao encham o nosso saco com seus mal-humores!

Eu sei que sao capazes. Eu já lhes vi sendo felizes. Mas parece que se reservam o direito de fazê-lo só quando estao fora da Europa. E quando voltam nao trazem consigo o aprendizado. "Estamos muito ocupados em entender como funciona a maquina fotográfica mas nao sabemos SER a máquina fotográfica" isso foi um amigo francês que me disse. Ser feliz é algo a ser feito em outros lugares e nas férias. E romper essa espécie de "lei" pode ser muito perigoso para essa estabilidade tao confortável que desfrutamos aqui no velho mundo. Imagina que bagunça se todo mundo começar a ser feliz aqui na Europa?

Com carinho,
Renata


ps: quando falo de ajuda nao é ajuda de ONG nem doaçao de dinheiro nao viu?

10 comments:

Unknown said...

Gata, docaralho! Seu texto ta belissimo e compartilho desta mesma inquietaçao sua!!! A falta de problemas sociais genrando pseudo problemas mentais e as novas patologias sociais...è un mundo difficile...
Beijossssss pra tu tatu!
yumma

Anonymous said...

renata
a tua sorte é que escreves bem.
eu sou portuguesa, logo europeia, nascida em moçambique, logo africana.
queria dizer-te alguma coisa mas não sei muito bem o quê.
a análise que fazes tem sentido, a raiva indiferenciada não.
o passado existe e é de todos.
mesmo o colonial, até tu o carregas num sangue que algures terá mais de europeu do que de africano mas isso não interessa.
a responsabilidade do passado deverá ser aceite por todos,mas tb não podemos continuar a levar as culpas pelo passado de 500 anos renata, porque o presente existe.
acredito que as diferenças tem mais de bom do que de mau, mas isso sou eu, eu que gosto de fado porque é melancólico e de kuduro, que me faz vibrar o sangue.
não tem que haver luta, entre os que são naturalmente contagiantes e outros que são naturalmente contemplativos, porque não tem de haver vencedores.
ou tem?

fica bem

ana

Renata said...

vamu ver se agora sai certinho:

oi ana! e eu que pensava que só eu e lícia passava por aqui... esse texto é pra isso mesmo, pra discutir sobre o assunto.

eu estou plenamente de acordo contigo a respeito do passado que é NOSSO. nao sei se fui muito clara mas eu fiz questao em varios momentos do texto de deixar claro que eu me incluo entre os europeus, eu moro aqui, eu sou filha de um e todos os brasileiros somos meio europeus tambem. e poderia tambem acrescentar que tenho consciência que nem os "indios" nem os africanos sao uns santinhos. os europeus colonizadores usaram muito das guerras internas entre tribos para dominarem brasil por exemplo. todos somos seres humanos. bons as vezes e maus as vezes. a maioria das vezes mau, na minha opiniao. infelizmente.

mesmo eu, uma brasileira burguesa branca, mais européia que africana, desfrutei da herança africana, tendo crescido e vivido no brasil 25 anos da minha vida. nem eu nem ninguém pode negar a influência da cultura africana e indígena no meu jeito de ser, ver o mundo, comer, dançar, apreciar música, etc etc. nao estou falando mal do sangue europeu, só tou tentando dar uma refrescada na cabeça da galera aqui sobre um passado que existiu e que deu frutos que estamos desfrutando até hoje (eu também) aqui na europa. essa acumulaçao de riqueza aqui se deve a esse passado, isso ninguém pode negar.

eu nao tou pedindo para que os europeus se autoflagelem por causa do que aconteceu no passado. é justo o contrário! eu tô reclamando a felicidade européia. dizendo que á possível! eu queria que os europeus começassem o que um amigo meu outro dia chamou de "revoluçao individual" - que é como eu acho que se muda o mundo realmente, começando de si mesmos.

a melancolia do fado é inspiradora, é revolucionária dentro de nós e se nota que te faz bem: eu recebo notícias suas, vou de vez em quando ver o que tu tem feito nos sites onde publicas tuas coisas, sem falar no que me chega aos ouvidos por geovane. eu tô falando da depressao improdutiva, da falta de energia de viver, do excesso de "reclamar da vida", da exageraçao da cultura da auto-suficiência, entre outras coisas que ninguém pode negar que existe muito mais aqui que no brasil, por exemplo.

quis também exemplificar como que os brasileiros, famosos por sua alegria de viver, conseguem conviver com as merdas e levar a vida com otimismo. mais uma vez: é uma questao de atitude. merdas temos em todos os lados (em diferentes formatos, como comentei antes), somos um planeta só, os povos andaram de um lado pra outro desde que o homem é homem e vao continuar andando.

a minha raiva nao é a respeito do que aconteceu no passado nao. é a atitude de cada um no presente. nao acho que é indiferenciada e acho que tenho razao em possuí-la. simplesmente nao consigo admitir que uma pessoa que tem o luxo de desfrutar de todos os privilegios de bem estar e qualidade de vida que se desfruta na europa nao consiga dar para si mesma uma vida rica, com energia, felicidade e colaborar para um mundo melhor começando pelo que está do lado. em vez de mandar dinheiro pra áfrica, fazer voluntariado nao sei onde e todes esses hábitos tao comuns aqui e muitas vezes duvidosos quanto à sua real funçao e eficiência. e a falta de consciência de que tudo isso foi e é sustentado pela miséria de países menos desenvolvidos também me dá muita raiva.

só isso.

bom te ver por aqui, espero que tenha esclarecido o que nao tenha ficado claro lá no meu textinho vomitao. bjinho

ps: "a tua sorte" por quê? se nao tu me dava um bombao era :-P vem pra barcelona pra gente cunversar...

Anonymous said...

estamos muito bem entendidos...
então mas não estavas em berlim?
posso ir ter contigo sim, mostras-me a cidade e dicutimos mais um bocadinho com um vinho bom, ou cerveja.

a sorte é só uma expressão, o tema deixa-me sempre de pé atrás, mas o facto de escreveres bem deu-me vontade de dizer alguma coisa tb.

beijo

ana

Unknown said...

“Oia que isso aqui tá muito bom, isso aqui tá bom demais...”

Apenas acho que não se trata de culpabilizar ninguèm por ações, fatos, condições atuais de vida... No entanto, o passado so tem haver com isso, o passado històrico, econômico, social, ambiental...o que somos hj, o que fazemos hj è o fruto. A forma como os brasileiros, os africanos e vários outros povos levam a vida alegremente, mediante a incontàveis adversidades, como tambèm, as sociedades de paises industrializados a fazem ao seus modos, è relfexo desses passados. Viver um presente mais equilibrado com tanta diversidade socioeconomica e cultural global e, ainda, um presente mais justo, è procurar endenter as sociedades politicamente, historicamente, economicamente, socialmente, antropologicamente, ambientalmente, biologicamente, etc. poque o mundo è assim? ou melhor, pq fazemos o mundo assim?.
Um livro belissimo a este respeito, que estou lendo neste momento è “As Américas e a Civilizaçao” de Darcy ribeiro (Antropologo brasileiro)
Beijos
yumma

Anonymous said...

e deixo um livro tb sobre a nossa estranha forma de ser, dum filósofo português, o José Gil e o livro chama-se Portugal, hoje- o medo de existir.

beijinho

ana

Renata said...

ueba! tao na lista jah :-D

pituska said...

ora pois! tb adorei o texto, renatinha. acredito no q a yummete falou, q esse presente q a gente vive é realmente o fruto do passado e daí vem toda essa raiva das oropa. porém, antes de culpar os europeus, foi ótimo vc ter falado q gente é gente e miséria é miséria (em qqr canto), e aí as misérias são diferentes, claro. aqui a coisa é mais urgente mas apesar disso, somos felizes e é incrível ser brasileiro, é mesmo diferente.
ah, gostei do título do livro do português, "Portugal, hoje- o medo de existir". q pungente!!
abraços aos seres humanos do bem e bejocas em tu, renatona!
Lícia

Renata said...

uia... aprendi a palavra "pungente" aqui no comment de lícia. aí tô doidinha pra usar ela.

olha que PUNGENTE a letra dessa muzga que todos nós rockeiros véios conhecemos:

ps: num vou dar nenhum ponto pra o que adivinhar de quem é a muzga porque essa é muito fácil dimai...

Miséria é miséria em qualquer canto
Riquezas são diferentes
Índio, mulato, preto, branco
Miséria é miséria em qualquer canto.
Riquezas são diferentes
Miséria é miséria em qualquer canto
Filhos, amigos, amantes, parentes
Riquezas são diferentes
Ninguém sabe falar esperanto
Miséria é miséria em qualquer canto
Todos sabem usar os dentes
Riquezas são diferentes

Miséria é miséria em qualquer canto
Riquezas são diferentes
A morte não causa mais espanto
Miséria é miséria em qualquer canto
Riquezas são diferentes
Miséria é miséria em qualquer canto
Fracos, doentes, aflitos, carentes
Riquezas são diferentes
O sol não causa mais espanto
Miséria é miséria em qualquer canto
Cores, raças, castas, crenças
Riquezas são diferenças

A morte não causa mais espanto
O sol não causa mais espanto
A morte não causa mais espanto
O sol não causa mais espanto
Miséria é miséria em qualquer canto
Riquezas são diferentes
Cores, raças, castas, crenças
Riquezas são diferenças.

Índio, mulato, preto, branco
Filhos, amigos, amantes, parentes
Fracos, doentes, aflitos, carentes
Cores, raças, castas, crenças
Riquezas são diferenças

Anonymous said...

hahahahah!! pois é, vivendo e aprendendo.
e a musga veio na minha cabeça qd eu tava escrevendo o primeiro comment. tudo a ver!
bjocas*
Lícia